sábado, 2 de dezembro de 2017

A biblioteca secreta de Daraya

Delphine Minoui é grande repórter do jornal francês Figaro, especialista do Médio Oriente. Há vinte anos que se dedica a esta região, tendo ganho o prémio Albert de Londres 2006 pelas suas reportagens no Irão e no Iraque. Vive atualmente em Istambul onde continua a seguir de perto a atualidade síria. O texto que aqui publico tem como fonte o seu livro “Les Passeurs de Livres de Daraya, une bibliothèque secrète en Syrie”, publicado no passado mês de outubro nas Éditions du Seuil, em França. Nele encontrei uma história extraordinária que gostaria de partilhar convosco.
Em 15 de outubro de 2015, D. Minoui descobre, por acaso, no Facebook, na página “Humans of Syria,” um grupo de jovens fotógrafos sírios. Lê a legenda que refere uma biblioteca secreta no coração de Daraya. Esta notícia capta de imediato a sua atenção: como é possível? Uma biblioteca nos escombros da cidade de Daraya, a cidade rebelde, faminta, cercada. Tinha sido um dos berços da revolta pacífica de 2011 e posteriormente cercada e bombardeada desde 2012 pelas forças de Bachar-al-Assad. A jornalista fica, portanto, surpreendida com a fotografia e a legenda e procura, através de emails e apelos no Skype e no WhatsApp, chegar ao seu autor – Ahmad, um dos cofundadores desta ágora subterrânea.
Ahmad relata-lhe, enfim, os acontecimentos dos últimos anos – a sua cidade devastada, as casas em ruína, o fogo e o pó, e no meio deste estrondo os milhares de volumes salvos dos escombros e colocados nesse refúgio de papel a que todos os habitantes têm acesso. No interior da narrativa sobre os bombardeamentos incessantes, Ahmad mostra como, face às bombas, à fome, ao medo, a biblioteca permanece uma fortaleza oculta: os livros, as suas armas de instrução massiva.
Delphine Minoui não hesita: tem de escrever um livro sobre a biblioteca de Daraya. Como não é possível viajar na altura para o terreno, só lhe resta o contacto via internet com estes jovens sobreviventes que continuam a resistir, nos últimos três anos, nas ruínas da cidade de Daraya, a 7 Km de Damasco. Esta cidade faminta e cercada pelo regime é um sarcófago. Ahmad, 23 anos, é um dos 12 mil últimos sobreviventes. Nos finais de novembro de 2012, a cidade havia sido bombardeada pelo regime e a maioria dos habitantes, entre os quais a família de Ahmad, tinha fugido para uma cidade vizinha. Ahmad recusa partir: é a revolução, a da sua geração. Sob as bombas, Ahmad mune-se de uma máquina fotográfica e realiza o seu sonho de criança, contar a verdade. Durante o dia percorre as ruas devastadas de Daraya, filma as casas desfeitas, os hospitais saturados de feridos, os enterros das vítimas, os mínimos traços desta guerra invisível, inacessível aos meios de comunicação estrangeiros. À noite publica os seus vídeos na Net.
Um dia, nos finais de 2013, os seus amigos chamam-no para ver os livros que se encontram sob as ruínas de uma casa destruída; querem recuperá-los.
--- Livros? Repete, espantado.
No meio da guerra, a ideia parece-lhe estranha. Porquê salvar livros quando não conseguimos salvar vidas?
Primeiro foi, pois, a hesitação. A pouco e pouco, porém, mais livros iam sendo descobertos aqui e ali. Ao cabo de algum tempo, Ahmad e os seus companheiros tinham reunido milhares de volumes e aberto numa cave a sua biblioteca secreta, local de refúgio, último reduto da liberdade sonhada e distante. No meio do caos, agarram-se aos livros como quem se agarra à vida. Com a esperança de melhores dias. Levados pela sua sede de cultura, tornam-se artesãos discretos de um ideal democrático, ideal em gestação, que desafia a tirania do regime.
Delphine Minoui continua a receber testemunhos dos rapazes que frequentam a biblioteca nos intervalos dos bombardeamentos. Confessam-lhe que os livros são para eles novas muralhas. Que memorizam passagens inteiras. Que antes da revolução teriam sido incapazes de ler uma linha. Que paradoxalmente o conflito sanguinário na Síria os tinha aproximado dos livros. Leem para sondar o passado oculto, leem para se instruírem. Para evitar a demência. Para se evadirem. A leitura, esse modesto gesto de humanidade que os prende à esperança louca de um regresso à paz.
Nestes jovens resistentes de Daraya, a leitura é também um ato de transgressão. É a firmação de uma liberdade de que foram durante muito tempo privados. Além dos volumes que conseguiram reunir nessa cave, os jovens de Daraya procuram mais leituras na Internet, descarregando textos, graças às pequenas antenas de satélite instaladas no início da revolução.
Os livros, essas armas de instrução massiva que fazem tremer os tiranos.
Professora: Isabel Moura Silva

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