segunda-feira, 29 de maio de 2017

"A ciência que faz a medicina funcionar"

A ciência que faz a medicina funcionar
Fomos recentemente surpreendidos pela morte de uma criança de sete anos provocada por uma simples otite. Soubemos também que os pais tinham recusado os tratamentos da medicina científica e optado pela administração de produtos homeopáticos. Ainda que a tentação seja forte, não devemos centrar a discussão nos pais da criança que se encontram já sobejamente dilacerados pela dor da perda. Devemos, isso sim, concentrar-nos na resposta a duas questões que consideramos pertinentes: em primeiro, quais as razões que levam algumas pessoas a prescindir de tratamentos cientificamente comprovados em troca de promessas de cura pagas a preço de ouro? E, em segundo, quais as razões que levam as instituições (governamentais e ordens profissionais) a tolerar ostensivamente algumas práticas que se afastam de forma descarada das boas práticas que regem a medicina de base científica?
O principal problema radica na iliteracia científica. Não é incomum encontrarmos pessoas que desconhecem os princípios basilares do método científico empírico, que confundem correlação com nexo de causalidade (ou seja, que não é por duas coisas acontecerem em simultâneo que estão necessariamente relacionadas entre si) e que assumem como credível informação obtida em fontes que não têm qualquer crédito. A frequente e crescente confusão entre intervenções que fazem as pessoas sentir-se bem e intervenções que tratam e/ou curam doenças deriva, precisamente, desta iliteracia científica.
A verdade é que, apesar de termos reduzido de forma significativa os níveis de iliteracia geral do país, falhámos coletivamente na missão de aumentar a capacidade de analisar criticamente os fenómenos à luz da cientificidade.
A construção do conhecimento científico na área da Medicina e das Ciências Naturais requer processos altamente complexos e com múltiplos sistemas de verificação e validação. Para que um tratamento se possa aceitar como eficaz é necessário explicar o seu mecanismo de ação na doença, demonstrar os seus resultados terapêuticos (incluindo a comparação com a toma de um placebo, isto é, algo inerte que simule um tratamento) e verificar se outros profissionais, mesmo em contextos e lugares distintos, obtêm os mesmos resultados seguindo os mesmos protocolos de tratamento. A demonstração e a reprodutibilidade das observações são, por isso, princípios basilares e fundamentais da Medicina baseada no conhecimento científico empírico.
Foi seguindo de forma rigorosa estes princípios que os cientistas e os médicos desenvolveram os antibióticos, descobriram a quimioterapia, inventaram os TACs e as ressonâncias e passaram a evitar praticamente todas as mortes por apendicite, só para citar alguns exemplos.
Sabemos que existem algumas pessoas que nos dizem ser capazes de tratar doenças com práticas que carecem de fundamento científico. E conhecemos também algumas pessoas que já consumiram essas práticas e nos garantem que melhoraram. Ainda que possam ter uma sensação subjetiva de melhoria, a verdade é que uma experiência individual não é algo que possa constituir-se, por si só, como conhecimento científico.
Para que essas práticas possam ser aceites é necessário que os seus promotores sigam os passos acima descritos e demonstrem que os seus resultados são reprodutíveis em qualquer parte do mundo. Infelizmente, nada disso foi conseguido através de práticas como a homeopatia, as dietas “para chegar novo a velho” ou a hipnose.
Assumindo que nem todos os cidadãos têm capacidade de discernir quais são os tratamentos baseados no conhecimento científico e aqueles que assentam em crenças inválidas e potencialmente perigosas, o Estado tem a obrigação de regular todas práticas alegadamente terapêuticas. No caso dos médicos, enfermeiros, nutricionistas ou farmacêuticos, essa regulação está delegada nas Ordens Profissionais enquanto que no caso dos outros “terapeutas” a responsabilidade recai diretamente sobre o Ministério Público.
Infelizmente, uns e outros têm tolerado de forma demasiado ostensiva modelos de negócio que se baseiam em promessas irrealistas, porque não demonstradas, de cura. Ainda mais tristemente, essa tolerância tem resultado na morte evitável de pessoas com doenças tratáveis.
Pedro Morgado
In Diário do Minho

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