quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Já leste?

espero que me calhe aquela fava

que é costume meter no bolo-rei:

quer dizer que o comi, que o partilhei

no natal com quem mais o partilhava

numa ordem das coisas cuja lei

de afectos e memória em nós se grava

nalgum lugar da alma e que destrava

tanta coisa sumida que, bem sei,

pela sua presença cristaliza

saudade e alegria em sons e brilhos,

sabores, cores, luzes, estribilhos...

e até por quem nos falta então se irisa

na mais pobre semente a intensa dança

de tempo adulto e tempo de criança.

Vasco Graça Moura


Natal

Foi tudo tão pontual

Que fiquei maravilhado.

Caiu neve no telhado

E juntou-se o mesmo gado

No curral.

Nem as palhas da pobreza

Faltaram na manjedoira!

Palhas babadas da toira

Que ruminava a grandeza

Do milagre pressentido.

Os bichos e a natureza

No palco já conhecido.

Mas, afinal, o cenário

Não bastou.

Fiado no calendário,

O homem nem perguntou

Se Deus era necessário…

E Deus não representou.

Miguel Torga

Diário V




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