segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Entrevista a Roque Amaro por Catarina Reis


Foto: Rita Ansone

Rogério Roque Amaro, investigador e dinamizador comunitário, está sempre do lado da revolução. Primeiro, como o menino do bairro de habitação social que se tornou académico. Agora, como o homem que fez nascer uma universidade popular e comunitária em Lisboa

Com uma guitarra, diz ter ajudado jovens emigrantes em França a perder a vergonha de se dizerem portugueses. Com um quadro, ensinou os alunos como um bom economista – a sua área de formação – deve estar preocupado em “dar felicidade às pessoas”. Aqui ou em vários países de África, repetiu o que fizera em Lisboa, em Carnide, com os grupos comunitários. Aos 70 anos, Rogério Roque Amaro, investigador do ISCTE e dinamizador comunitário, tem quase tudo feito.

Quase. Em dezembro, fechou as portas a 47 anos de academia, como professor, para reformar-se. Reformar-se? Bem, à sua moda. Vai continuar a dedicar-se às comunidades para quem trabalhou toda a vida – as da cidade e as minorias.

Rogério Roque Amaro não nasceu em Lisboa, mas tinha apenas dois anos quando a trocou pela aldeia de Vargos, em Torres Novas. O pai teve que vir trabalhar para a construção, a mãe, mulher a dias, veio atrás. Sem muito na algibeira, conta uma vida passada em vários bairros de habitação social. Saiu académico, contra todas as expectativas, porque um professor acreditou que ele faria a diferença no mundo.

Aprendeu com a mãe e a avó a pôr-se sempre do lado dos mais desprotegidos. Herdou desta avó a solidariedade: ela doava feijão e sopa às escondidas de todos. Da mãe, guarda o segundo olhar sobre os outros. Quando era criança, um menino cigano tentou roubar-lhe a bola, mas a ideia que ele tirou dali foi de que esta é uma comunidade necessitada, em vez de se render aos velhos preconceitos. Tem dedicado parte da sua vida académica e social a investigar sobre esta discriminação de décadas.

Rogério Roque Amaro acaba de se reformar de 47 anos dedicados à academia. Foto: Rita Ansone

Rogério Roque Amaro é agora o cérebro da nova universidade popular comunitária de Lisboa, a Pluriversidade.

Estivemos à conversa com ele. Primeiro, num jardim, interrompidos por um telefonema que dava conta de mais uma missão, desta vez no bairro Horta Nova. Era preciso comida e encaminhamento para alguém com quadro clínico débil que tinha acabado de perder a família. Retomámos a entrevista numa taberna do Saldanha, no dia seguinte, porque esta missão de estar lá para todos e para mudar tudo para melhor ele leva-a bem a sério.

Deu a última aula há cerca de um mês, depois de 47 anos de academia. Ainda está fresco na memória aquele primeiro dia?

Comecei em novembro de 1974. Lembro-me de estar a dar aulas e de a aula ser interrompida, no 11 de Março. Já estava no ISCTE, mas também dava aulas na Universidade Católica e esse evento deu-se lá. Lembro-me perfeitamente onde estava, no quadro, a escrever, quando veio uma empregada dizer: “Temos que acabar as aulas, porque está a haver um ataque de aviões ao RAL 1 (Regimento de Artilharia Ligeira). Estava na cadeira de Economia do Desenvolvimento, a cadeira que me acompanhou desde sempre.

A academia era completamente diferente nessa altura…

Completamente. Mas não na Católica. Aliás, eu não aguentei muito o estilo da Católica, estive lá três anos. Havia muitos meninos que chegavam lá de chauffeur, eu nem sequer tinha carro e eles faziam questão de me fazer sentir isso. Para mostrar a superioridade social.

E como era ensinar nessa época e para alunos tão desafiantes?

Consegui sobreviver, porque nunca me submeti a essa lógica de que alguns eram superiores. Também é verdade que a Católica acolheu jovens filhos de famílias retornadas, que vinham traumatizadíssimos, porque tinham assistido à morte de familiares, alguns os pais. Foi uma parte social muito importante e que me ajudou bastante a situar-me, porque tinha mais a ver com as minhas preocupações.

Mas é interessante que, na mesma altura, estava eu a dar aulas no ISCTE (quando ainda era aqui no Campo Grande), que era uma instituição ultra revolucionária, dominado pelo MRPP. Os alunos mudaram completamente as cadeiras que tinham nomes convencionais – como Economia Agrícola – e eu passei a dar, a certa altura, uma cadeira que se chamava Questão Agrária, onde a bibliografia era toda marxista – incluindo os discursos do presidente Albano Nunes [ex-dirigente histórico do PCP], impostos pelos alunos. E havia uma cadeira chamada Controlo Operário e outra que era Transição para o Socialismo.

“Já aí, liguei-me ao movimento alternativo que era a missa dos jovens, que acontecia num barracão ao lado da igreja e ao mesmo tempo que acontecia lá a missa dos senhores ricos – onde estava a família do Santana Lopes e o próprio, por exemplo". ROGÉRIO ROQUE AMARO

Quem eram esses alunos que iam para o ISCTE? Pessoas alinhadas com esses ideais?

Não e isso também é interessante. O ISCTE foi criado em 1972, numa medida do ministro Veiga Simão, para tentar acalmar a situação nas universidades, para criar uma universidade de Economia… mais tranquila. Porque a que havia era o ISEG, profundamente revolucionário. Tinha havido a morte de um estudante do MRPP, o Ribeiro Santos – lembro-me perfeitamente, estava lá nesse dia. Houve várias cargas policiais. Houve dias em que tive de correr de lá, porque vinha a polícia. Alguns colegas não conseguiam sair e apanhavam. Nunca tive esse azar. E o ISCTE nasce em reação a tudo isto, porque Veiga Simão considerava que até a parte docente já estava contaminada pela revolução. Foi o primeiro instituto da Universidade NOVA de Lisboa, era essa a ideia, criar uma universidade nova – além da clássica e da técnica. E convidou alguns professores mais tranquilos.

Dei Economia do Território e Ambiente e o que eu procurava sempre transmitir era a ideia de que era preciso, primeiro, ir para o terreno, conhecer as pessoas, ouvi-las e trabalhar as ideias e soluções a partir das pessoas. Acho até que fui das primeiras pessoas a falar de Ambiente no ISCTE.

Preferia esses tempo?

Sempre gostei muito de ensinar. Tive sempre boa relação com os meus alunos, que foi, aliás, o que me permitiu manter tanto tempo na Universidade. Sempre trabalhei muito com jovens nos bairros, por isso, naturalmente construo essa boa relação…

Porquê? O que o levou a esse trabalho?

Isso começa em 1967, tinha em 16 anos, quando me mudei para os Olivais. Sempre me habituei a mudar de casa, venho de uma família pobre. Os meus pais concorreram a uma casa da Câmara e fomos para os Olivais, para um bairro social. A minha mãe era muito católica, beata até – isto sem crítica. E ela levava-nos para a igreja, para a paróquia, e aos 16 anos entrei para um grupo de jovens. E, já aí, liguei-me ao movimento alternativo que era a missa dos jovens, num barracão ao lado da igreja ao mesmo tempo que acontecia a missa dos senhores ricos – onde estava a família do Santana Lopes e o próprio, por exemplo. Foi uma reivindicação dos jovens: o padre era muito conservador, não nos identificávamos com o que ouvíamos na outra missa. Acabou por ser um espaço onde encontrei uma boa oportunidade para pensar a sociedade, para propor alternativas. Avisaram-me várias vezes para eu ter cuidado, porque o meu nome já estava referenciado pelo regime. Nunca me aconteceu nada, felizmente.

Senão ter encontrado aí uma vocação, talvez…

Exatamente. Porque, às custas disto, tornei-me animador de grupo de jovens mais novos, logo aos 17 ou 18 anos. Olhe, onde entrou o Santana Lopes. Os nossos grupos eram muito diversificados do ponto de vista social: miúdos filhos de trabalhadores das obras, como eu; filhos de polícias, de militares. Poucos do lado elitista. E ele chegou a lá estar, mas não se deu com os colegas e desapareceu. Esta época fez-me ganhar um gosto imenso em trabalhar com jovens. Foi o que fiz, até ir para França – e lá também trabalhei com jovens.
“Ao fim de três anos, não só tive aquela malta a falar português como os pais. Aquela miúda que tinha desligado a televisão a correr, na altura com 14 anos, conseguiu convencer a professora para eu ir à escola, à turma, falar de Portugal.” ROGÉRIO ROQUE AMARO
Roque Amaro: “Formava grupos de jovens para tocarmos e cantarmos nas festas que se faziam, porque eles faziam muitas festas. Cantávamos em português, quase tudo Zeca Afonso, mas também algumas francesas.” Foto: Rita Ansone

Como é que volta a cruzar-se com esse mundo, agora em França?

Estava eu a fazer o doutoramento, mas na verdade ocupava maior parte do tempo a trabalhar com os assessores de imigrantes portugueses e norte-africanos. Porque foi a época – já dez anos depois disto tudo – em que começou a haver uma atitude diferente, em França, face aos imigrantes. Até essa altura, eram bem-vindos porque precisavam deles. Depois, começaram a ser marginalizados e corridos. Eu estive nessa luta para os defender e trabalhei muito com jovens porque me apercebi que muitos deles tinham vergonha de se afirmarem como portugueses. Até tentavam disfarçar a sua origem na escola. Um dia, estava na casa de uns portugueses, uns anos mais tarde, um domingo de manhã: estavam a ver TV, provavelmente na RTP Internacional, um programa de futebol português; bateram à porta, eram os colegas dos filhos que vinham buscá-los, e a primeira coisa que fizeram foi ir a correr desligar a televisão. E acho que ajudei a reverter isso…

Como?

Com a minha viola! Formava grupos de jovens para tocarmos e cantarmos nas festas que se faziam, porque eles faziam muitas festas. Cantávamos em português, quase tudo Zeca Afonso, mas também algumas francesas. “Milho Verde” cantávamos muito, porque era uma forma muito interessante de lhes falar de uma tradição em Portugal e de pôr os pais a falar disso com os filhos, porque eles sabiam o que era. Também havia espaço para cantar o Malhão. E dava para uma coisa muito boa: dar-lhes aulas de português com as letras.

Porque eles não sabiam falar a língua do seu país de origem…

Grande parte não. E muitos tinham-se recusado a falar. Mas, ao fim de três anos, não só tive aquela malta a falar português como os pais… Aquela miúda que tinha desligado a televisão a correr, na altura com 14 anos, conseguiu convencer a professora para eu ir à escola, à turma, falar de Portugal.

Qual é que foi o resultado disso?

Vários. Estes miúdos começaram a sentir que ser português não era uma coisa necessariamente negativa, também tinha coisas boas. Depois, permitiu, através dos pais, conhecer as histórias de Portugal, que era uma coisa que não acontecia, esta transmissão de conhecimento. E ainda começamos a ser convidados para festas, para atuar nos palcos de festas populares. Mas também o facto de muitos deles terem deixado de ter vergonha de se afirmarem portugueses.

E porque é que foi parar a França? Porquê França?

Era para ir para o México. [risos] Os dois professores com quem trabalhava na altura, queriam influenciar-me, mas, na altura, fazer um doutoramento em Portugal não era muito interessante. E aconselharam-me a ir para o estrangeiro. Acabei por ir parar à Universidade de Grenoble, que era muito ligada ao terceiro mundo, muito ligada a África, e que tinha esta perspetiva do desenvolvimento.

E era importante para si ter um doutoramento?

Acho que foram eles que me empurraram para aqui. Porque disseram que eu podia ter uma boa carreira como docente, mas que para me afirmar tinha que ter um doutoramento.

Era estranho, nessa altura, vindo de raízes tão humildes, chegar a académico?

Não era muito vulgar, não.

O que é que lhe deu as bases para chegar aí?

A minha mãe era analfabeta, a minha avó também. O meu pai fez a quarta classe na tropa. E eles apoiaram-me sempre. No ciclo preparatório (agora o 2.º ciclo), na escola Eugénio dos Santos, um professor de Português chamado Barata chamou a minha mãe e disse: “O seu filho tem que ir para economia”. Eu não fazia a mínima o que era Economia. E eu acho que foi isso que puxou a minha mãe para me ajudar a chegar lá. E eu achei que ele, como professor, devia ter razão. Então, fui para Economia.

Arrependido?

Arrependido não. Não me identifico com a economia dominante, de todo, mas permitiu-me ser crítico da economia por dentro. E como tive as cadeiras mais chatas, posso estar à vontade a falar disso.

Foi o facto de se ter que se esforçar tanto para chegar à faculdade que o fez não olhar para a Economia sem olhar para a solidariedade – dois conjuntos que costuma juntar muito?

Onde é agora o ISCTE, por trás havia uma vacaria e uma senhora que vendia leite – a minha mãe ia comprar o nosso leite. E essa senhora tinha um irmão que fez alguns estudos e sabia um bocadinho mais do que nós todos. Foi ele quem disse à minha mãe que eu poderia ter uma bolsa de estudo e que a ajudou a fazer uma candidatura à Gulbenkian. Tive sempre bolsa de estudo, até ao fim. Foi isso que me permitiu estudar. Devo-o à minha mãe. Ao filão de mulheres da minha família, aliás. Porque elas sempre foram muito ligadas às questões da solidariedade, da ajuda ao outro. A minha mãe tinha problemas com o meu pai por causa disso, por ajudar tanto as pessoas, por ir levar comida a um viúvo, por exemplo. Ia às prisões, ia aos hospitais… E eu acompanhava algumas vezes, como filho mais novo. Para mim, a economia nunca foi desligada do social e da solidariedade. Nunca. Tem que se ser um economista para dar felicidade às pessoas, com preocupações humanas e sociais.

“Tenho orgulho em ter continuado como economista, para lutar dentro dela por uma economia diferente.” ROGÉRIO ROQUE AMARO

Isso era revolucionário nessa altura?

Não tive essa noção, na altura.

E agora, fazendo uma retrospetiva?

Era revolucionário, era. Comecei a ver, ao fim destes anos todos, que a maior parte dos economistas está-se nas tintas para isto. Querem fixar em números, em estatísticas, em valores ligados à riqueza material, e não privilegiam, nas suas análises, este lado social. A maior parte acabou por ficar presa àquilo em que a economia se tornou: não uma ciência social, mas uma técnica ligada a números. E isso eu recusei-me sempre a ser. E, nesse ponto de vista, tenho orgulho em ter continuado como economista, para lutar dentro dela por uma economia diferente.

Depois, isto completou-se imenso com as idas a África e à América Latina, o trabalho no terreno.

Que começam porquê?

A primeira vez que fui a África fui à Guiné-Bissau, a convite do professor Mário Murteira, para ir dar uma formação sobe desenvolvimento a jovens. Mas apanhei de tudo um pouco e foi marcante por isso: dois guerrilheiros, homens da PAIGC [Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde], que tinham a quarta classe, que vinham do mato – isto no princípio dos anos 80 – e que, apesar de não haver material escolar na Guiné, eles recusavam as minhas folhas, porque tinham uns caderninhos pequenos onde tomavam nota de tudo. Malta quase analfabeta, mas muito interessados em perceber o que era o desenvolvimento, como fazer, como agir.

Foram os alunos mais interessados que encontrou na carreira como professor?

Foi. Aquele grupo foi um dos mais interessados. E, depois, os outros que encontrei por lá. Uma coisa que sempre quis foi mergulhar na vida local por onde passasse. Eu passava os dias na rua, nos mercados, e isso ajudou-me muito a perceber as pessoas e as visões delas. E isso ajudou-me a aperceber que a economia poderia e deveria ser para as pessoas.

E, depois disto, nunca mais deixei de ir. Vou voltar lá agora, a São Tomé, para apoiar dois grupos comunitários. Por ter levado, no âmbito de um projeto, a experiência dos grupos comunitários que existem em Lisboa.

E que não terão o mesmo contexto e funcionamento que estes da cidade…

Não, porque a vida não tem as mesmas características. Mas assentam nos mesmo princípios: reúnem periodicamente para discutir soluções para os problemas da comunidade, há um grande envolvimento dos moradores. Em São Tomé, é o bairro da Boa Morte, urbano. E, depois, na zona rural no sul da ilha, a zona mais pobre, com muita gente ligada à pesca e à agricultura. Tem também, como aqui, o envolvimento de algumas instituições, mas não tão fortes, porque as instituições têm outro poder. E até de igrejas, que estão sempre muito presentes nestes grupos.

“Estamos numa encruzilhada histórica. Por um lado, há tendências de centralização e de autoritarismo. Mas, por outro lado, também há resistência a isto. As pessoas querem ter mais voz na cidade.” ROGÉRIO ROQUE AMARO

E o que se discute são assuntos tão banais do dia-a-dia como nos grupos de cá?

São. Por exemplo, o grupo do bairro da Graça, em Benguela [Angola], que é talvez o mais avançado, conseguiu discutir e encontrar soluções interessantes, coletivas e comunitárias para a questão da recolha lixo, que falhava redondamente. Foi a comunidade que se organizou, com apoios externos, e conseguiu que passasse a haver contentores, mobilização da Câmara para a recolha e o trabalho de consciência das pessoas – a preocupação de saber utilizar os contentores, até fazendo separação. Como é que fizeram isto? Recorrendo ao teatro. Fizeram peças de teatro na rua, nas escolas e nas igrejas sobre o lixo e os malefícios do lixo. Representavam situações em que a pessoa não recolhia o lixo, ficava doente, ia para o hospital e depois morria. E isso marcou as pessoas. Outra conquista foi a redução da gravidez adolescente. Uma enfermeira que ia às reuniões dos grupos comunitários ajudou. Em dois anos, conseguiram reduzir o número de raparigas adolescentes grávidas. E, repare, estes dois problemas são problemas que também encontramos aqui.

Mais fáceis ou mais difíceis de resolver em Lisboa?

Por um lado, existe aqui uma maior facilidade em passar a mensagem, porque as pessoas estão muito ligadas às redes sociais. Por outro, lá é mais fácil trabalhar o entusiasmo das pessoas. Através de coisas simples como fazer peças de teatro.

Esteve no arranque do primeiro grupo comunitário aqui em Lisboa…

Estive, porque fui convidado. Nos anos 90, estávamos no âmbito dos projetos de luta contra a pobreza em Portugal, por influência da União Europeia e com dinheiro europeu, e havia um programa em Carnide, da Misericórdia de Lisboa. Fui formador. Algumas das formandas perguntaram se não as queria ajudar a pôr em prática o que estava a dizer teoricamente. “Claro que sim!” Fiz formação às instituições locais como a paróquia, a escola, a Junta, alguns departamentos da Câmara, o centro de saúde, o grupo de jovens Renascer e os Escuteiros. E, depois, os grupos da comunidade: a associação de pais, a de moradores e as três coletividades do Bairro Padre Cruz – os Amigos da Luz, os Escorpiões e os Unidos. E reunimos à noite, na paróquia. Gente licenciada e gente com a 4.ª classe, a discutir problemas do bairro.

Inspirados em algo que já acontecia noutra parte do país?

Eu já vinha de outras experiências de desenvolvimento local, as primeiras em Portugal, nos anos 80, no Alentejo. Como a Messejana [freguesia], um marco histórico no desenvolvimento local. Foi onde nasceu uma cooperativa chamada ESDIME e onde estava uma figura, como formador, que me marcou profundamente: Camilo Mortágua, o pai das gémeas Mortágua. Ele acabou por lançar as sementes para Viana do Alentejo, no distrito de Évora, e eu acompanhei-o. Muitas vezes saí daqui às cinco ou seis da tarde, depois de ir buscar os meus filhos à escola, pegava na minha carrinha e ia para lá ter com ele, até à uma ou duas da manhã e voltava, porque no dia seguinte tinha que me levantar cedo para levar os meus filhos de volta à escola. Fiz isto muitas vezes.

Como é que nasce a ideia de que criar um grupo comunitário é um caminho para combater a pobreza?

Só nasceu na formação de Carnide. No fim da formação, as pessoas estavam tão entusiasmadas por estarem juntas a discutir o seu bairro, que quiseram continuar. A formação foi muito prática, ligada aos problemas da zona. Então, o grupo comunitário, o primeiro, foi criado em 1993, em Carnide.

Depois, acharam que poderia ser replicado noutros sítios…

Sem dúvida. A Junta passou esta lógica para o bairro Horta Nova e a Ameixoeira-Charneca pediram para ir fazer o mesmo com o bairro da Quinta Grande, um bairro de barracas, e com as Galinheiras. Há hoje 19 grupos comunitários na cidade de Lisboa, dos quais 15 em bairros de habitação municipal.

Estamos numa fase em que as pessoas procuram ter mais voz na cidade ?

Estamos numa encruzilhada histórica. Por um lado, há tendências de centralização e de autoritarismo. Mas, por outro lado, também há resistência a isto.

Há mais ou menos?

Não sei se conseguimos medir isso. Estou a receber muito mais solicitações do que há uns anos. Vejo que há um mundo crescente de dinâmicas deste género. E mesmo os grupos comunitários que já existem, os cidadãos, estão muito mais ativos do que estavam antes. As pessoas veem que os seus problemas não são resolvidos e estão à procura de novas formas de os resolver. Depois, porque algumas situações em que as coisas foram resolvidas no âmbito do grupo mostra que outras soluções podem ser encontradas assim. Mas também há um certo cansaço das formas políticas tradicionais e os cidadãos procuram outras formas menos convencionais, onde possam ter mais proximidade e confiança no que lhes é apresentado para resolver os problemas do bairro.

As minorias, as comunidades marginalizadas, também entram proativamente neste processo, para se fazerem ouvir mais na cidade?

Gostaria de dizer que sim, mas não posso. O caso das comunidades ciganas, por ter sido demasiado tempo o que estiveram debaixo do tapete, à margem, levou a que desenvolvessem as suas próprias estratégias, o próprio mundo. E fazem muita questão de o manter, porque foram a salvaguarda deles, a defesa que tiveram durante muito anos. O que inibe muito a participação deles naquilo que propomos. Porque desconfiam. Isto é verdade como um todo. No entanto, não invalida que haja cada vez mais gente na comunidade cigana a querer fazer pontes e a participar. Digo muitas vezes isto: muito mais, hoje em dia a resposta não é “sim” ou “não”, é “sim e não”. Não é ser ou não ser, como Shakespeare dizia, é ser e não ser. Porque, na verdade, nós não somos bons ou maus, somos bons e maus. Somos demasiado complexos.

Estudou muito sobre a comunidade cigana e escreve e fala muito sobre ela. Quando é que teve o primeiro confronto com a discriminação contra esta minoria?

O primeiro episódio de que me lembro tinha sete ou oito anos. A minha mãe fazia limpeza, era mulher a dias, e trabalhava num colégio, e eu ia para lá jogar à bola sozinho. E lembro-me perfeitamente da primeira imagem que tenho da comunidade cigana: quando um menino cigano me tenta roubar a bola. Mas não fiquei com uma imagem negativa, porque a minha mãe relativizou: “Se calhar aquele menino nunca teve uma bola…”. E eu fiquei com a ideia, sim que era um povo que passava por dificuldades.

Depois, muito marcante, foi o que aconteceu na aldeia onde nasci – Vargos, em Torres Novas – e para onde fui indo passar férias. Havia uma comunidade cigana a morar lá perto, não muito integrada. Numa festa da aldeia, fui convidá-los para virem à festa, o que levou os meus conterrâneos a criticar-me. E inclusive pedi licença a um deles para dançar com uma das meninas ciganas. Pedi e consegui. Coisa que era impossível. E se por um lado os meus colegas me criticaram, por outro elogiaram-me por eu ter dançado com uma cigana.

Porque é que nunca caiu neste pensamento generalizado que se tem desta comunidade?

Eu acho que foi a ideia forte com que fiquei sempre de estar junto dos mais desfavorecidos. E que me foi passado pela minha avó e bisavó. A minha avó ia levar feijão e sopa, às escondidas, às pessoas mais pobres. Quase como a Rainha D. Isabel.

Estamos mais ou menos tolerantes para a diferença?

Genericamente, neste momento, a existência de um discurso como o de um partido de extrema-direita no Parlamento acentua a discriminação e fá-la ganhar contornos de irracionalidade.

Ajuda a validar essa discriminação?

Algumas pessoas estão hoje muito mais à vontade em dizer aquilo que antes diziam apenas às escondidas. Desse ponto de vista, estamos pior. Mas também já houve momentos no passado em que estivemos muito mal, como a época em que tivemos ataques de skinheads que culminaram na morte do Alcindo Monteiro, no Bairro Alto. O que agora me parece que esteja mais presente é o discurso contra a comunidade cigana. E é preocupante. Há altos e baixos, temos estas fases no país, e depende de várias coisas, como uma crise, que abre portas ao descontentamento, ao discurso de ódio e à discriminação. No geral, as crises abrem caminho para isso.

Como é que podemos combatê-lo?

Isso tem que passar pela escola, que está muito desafiada para a diversidade. Porque nunca houve tanta diversidade cultural nas escolas como hoje e seria bom que soubessem aproveitar isto como uma riqueza, para partilhar culturas, origens. Dá trabalho e implica trabalhar bem. Isto é quase um imperativo que o próprio Ministério da Educação deveria acompanhar. Mas sempre que quisemos fazer mudanças rápidas, deu para o torto. Por isso, precisamos de persistência e paciência.

Só assim não se leva essas histórias todas com que lida diariamente como um peso ao final do dia?

Sempre lidei bem com isso. Sei que o mundo não vai mudar amanhã. Isso tranquiliza esse lado da luta.

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