terça-feira, 3 de dezembro de 2019

"Comer é muito mais que ingerir alimentos..."

Porto, 30 de abril de 2018

Cara Professora,

Ao longo das nossas aulas, percebi que gosta de compreender a relação que as pessoas estabelecem com a comida, as memórias que despertam, as sensações que provocam…
Por isso, decidi escrever-lhe e confidenciar-lhe alguns momentos da minha relação com a comida.
Em casa dos meus pais, como na maioria das casas portuguesas, era a minha mãe, a D. Edite, que cozinhava. Mas havia um problema, a D. Edite não gostava nada de cozinhar, o que ficava registado nas refeições confecionadas por ela, e com o passar do tempo, essa falta de vontade foi acentuando-se.
No entanto, quando penso nos cozinhados da minha mãe, há três pratos de que tenho muitas saudades, e que ninguém consegue fazer como ela fazia, a sopa de feijão, as lulas recheadas e os rins de porco fritos. Tanta saudade!!!
Como todos nós, a D. Edite tinha as suas manias. Uma delas era recusar-se a colocar a panela da sua fabulosa sopa de feijão, que tinha de haver sempre, no frigorífico. Ficava sempre em cima do fogão.
Era uma sopa simples, mas cheia de sentimento! Se a memória não me falha, a minha mãe utilizava feijão vermelho, nabo, cenoura, chouriço e sempre, mas sempre, couve lombarda e, nunca podia faltar uns bagos de arroz ou umas massas cotovelinho. Ah, e o azeite era sempre cozido porque se fosse cru, fazia mal ao meu pai.
A base era apenas feijão vermelho passado. Os restantes ingredientes eram cortados, da forma mais rápida, e boiavam na minha tijela. Sim, a sopa sabe-me muito melhor quando a como numa tijela!
Todos os sábados, bem cedo, a minha mãe fugia de mim, para poder ir às compras, para a semana, ao Mercado do Bom Sucesso. Quando eu acordava, depois de perceber que me tinham passado a perna, ia à cozinha, acendia o fogão e aquecia a panela da sopa para tomar o pequeno-almoço. Que bom que era comer sopa de feijão, cheia de entulho, como se dizia lá em casa, para começar o dia!
Esta sopa também me leva aos tempos em que comecei a namorar com o meu marido. Eu sempre gostei muito de comer e, quando conheci o Nuno, foi um bocadito constrangedor… eu comia muito mais do que ele. Ora, o meu marido era, e ele não está aqui para nos ouvir, o típico filho único que não gostava de quase nada, só de bife com batatas fritas. Pois isto, foi um problema lá em casa. A minha mãe estava sempre a perguntar: “Oh filha, o que é que eu faço para o Nuno?”. Diz-se por aí que o Nuno começou a ser menos esquisito com a comida, depois de comer a sopa da sogra. Dizia a D. Edite: “Nuno, coma à vontade, não tem nabo (ele não gostava).” E os pedaços de nabo boiavam no prato… e ele, por educação, lá comia a sopita.
Agora que tenho mais um filho único na minha vida, mas que puxou à mãe e gosta de provar de tudo e nunca diz que não gosta antes de provar, a Avó Edite já não consegue fazer a sua maravilhosa sopa de feijão. Dos cinco netos da minha mãe, só o Francisco, não provou a sopa da avó…
Bem, não a maço mais.
Ao escrever esta carta para si, emocionei-me, muitas vezes. Comer é muito mais que ingerir alimentos!

Permita-me que hoje me despeça com beijinhos,

Elisabete

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